Por Elisabeth Zorgetz
Os movimentos de massa a partir de junho de 2013 foram os maiores e mais significativos protestos no Brasil em uma geração, e abalaram o sistema político do país. Seu crescimento explosivo, o tamanho e o alcance extraordinário, apanhou a todos, a esquerda, a direita, e o governo, de surpresa. Neste ensaio, busco analisar estes movimentos em função das realizações e das lacunas da transição democrática, em meados dos anos 1980, e a experiência das administrações federais lideradas pelo Partido dos Trabalhadores desde 2003, tal como o legado que podemos identificar para a experiência de Ilhéus.
Apanhado dos fatos
Em 6 de junho, a esquerda radical do movimento pela tarifa zero (Movimento Passe Livre – MPL), uma organização não-partidária e autonomista, que tem sido ativa no país há vários anos (especialmente desde 2005* em Florianópolis, São Paulo e Porto Alegre de forma não organizada) realizou uma pequena manifestação exigindo a reversão de um recente aumento nas tarifas de transporte público na cidade de São Paulo, que ocorreu de R$ 3 a R$ 3,20. O movimento foi criticado pela imprensa por bloquear o tráfego e fazer exigências irrealistas, e a manifestação foi atacada pela polícia. O MPL aumentou em número nos dias seguintes, e a polícia respondeu com o aumento da brutalidade, espancando manifestantes e transeuntes indiscriminadamente, e ferindo vários jornalistas.
Em duas semanas, as manifestações explodiram em tamanho ao mesmo tempo, se espalhando por todo o país. Eles atraíram mais de um milhão de pessoas em centenas de cidades, e os movimentos foram permanentes em vários locais, incluindo uma grande mobilização nacional liderada pela esquerda em 11 de julho. Elas envolvem trabalhadores, principalmente jovens, estudantes e a classe média, e movimentos localizados de comunidades pobres e categorias de trabalhadores com demandas que podem ser mais ou menos específicas para as suas circunstâncias (motoristas de ônibus, motoristas de caminhão, trabalhadores do setor da saúde, educação e assim por diante). Em Ilhéus, apesar do primeiro momento em que todos se sentiram à vontade para levar suas reivindicações às ruas, se tornou responsabilidade da juventude delimitar as pautas. Enquanto no primeiro ato víamos proprietários de terras pedindo pela manutenção dos privilégios, o público foi sendo dilapidado positivamente às pautas de esquerda a partir de então. Apesar das inúmeras tentativas de aproximar o debate classista com os trabalhadores rodoviários, a pressão do patronato e ilusória crença do reajuste salarial baseado na tarifa os manteve distantes do começo ao fim.
Em meados de junho, a imprensa e as redes de televisão de repente mudaram de lado e começaram a apoiar o movimento. Eles imediatamente se envolveram em uma tentativa de grande escala para liderar o movimento, oferecendo cobertura geral, chamando as pessoas para as ruas, e – muito importante – patrocinando a multiplicação e de-radicalização das demandas, em direção a uma cacofonia centrada em temas de cidadania gerais, especialmente, a ineficiência estatal e a corrupção, a fim de abafar a esquerda e deslegitimar o governo federal.
A partir deste momento, as manifestações se tornaram muito mais brancas e de classe média na composição. Elas incluíram banners sobre toda uma série de questões, entre as quais os serviços públicos; FIFA, a Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014; direitos dos homossexuais e a legalização das drogas; voto obrigatório; questões de aborto e religiosas; gastos públicos, privatizações e monopólios estatais; presidente Dilma Rousseff e os do Partido dos Trabalhadores, o retorno do regime militar, e, especialmente, a corrupção. Qualquer um poderia vir com sua própria demanda, e ao final do curso de mobilizações as pautas eram mais individuais e individualizantes. Foi especialmente paradoxal ver as pessoas da classe média expressando indignação com serviços públicos que não utilizam, e não têm nenhuma intenção de usar em breve.
Em comum com os movimentos recentes em outros locais, as manifestações brasileiras foram em grande parte organizadas através de mídias sociais e TV. Excepcionalmente, elas muitas vezes não tinham líderes claros e discursos tampouco. Frequentemente, grupos de pessoas se organizaram no Facebook e Twitter, reuniam-se em algum lugar, e depois marchavam em direções que eram frequentemente pouco claras, dependendo de decisões tomadas por pessoas desconhecidas, o que favorecia a horizontalidade reclamada.
A repressão policial foi por vezes acompanhada de motins, e, em seguida, a polícia se retirou, em parte por causa de preocupações com a sua imagem pública. A infiltração da polícia e a extrema-direita era evidente e generalizada. Algumas marchas foram, de alguma forma, autoproclamadas de apartidárias e militantes de esquerda e sindicalistas foram perseguidos e agredidos por bandidos gritando “meu partido é o meu país”. Durante este período, as mobilizações continuaram a crescer; mas tornaram-se mais radicalizadas e mais fragmentadas. Quando o governo federal finalmente indicou a São Paulo e Rio de Janeiro que revertessem o aumento da tarifa de transporte, oferecendo-lhes benefícios fiscais acompanhados pela ameaça de deixá-los sozinhos para resolver a confusão, as mobilizações já estavam fora de controle.
No final de junho, a esquerda fez um esforço coordenado para recuperar a liderança do movimento, enquanto a presidência tentou tomar a iniciativa de cima com uma chamada para a reforma e iniciativas para aumentar os gastos nos serviços públicos e melhorar os serviços de saúde. As manifestações foram posteriormente diminuindo de tamanho, exceto sobre a grande greve nacional em 11 de julho. Enquanto Porto Alegre buscava manter ativo o diálogo e a autonomia com os partidos que buscavam aparelhar o movimento, Ilhéus acabou por sacrificar a luta pelo transporte digno e módico ao adotar completamente o justo “Fora Jabes”, autoritário prefeito do município, rendendo-lhe uma rejeição que beirou os 89% à época. A manobra, discretamente articulada com a oposição política na cidade e a juventude partidária ativa no movimento, apesar de possuir prerrogativas absolutamente plausíveis, foi uma das razões responsáveis pelo desmonte do movimento Reúne Ilhéus.
Considerações e Lições
A primeira lição sobre os movimentos é que eles confirmaram a rejeição constante do ex-presidente Lula da Silva, da presidente Dilma Rousseff e do PT por grandes segmentos das classes média e alta, e a mídia. Seu ódio, que foi exibido com destaque nas marchas e na cobertura da imprensa que o acompanhava, não era devido a preocupações econômicas estritas. Lula tem plausivelmente insistido que a elite brasileira nunca fez tanto dinheiro em sua administração, e isso também é válido sobre Dilma. No entanto, frações da burguesia e as classes médias se ressentem com sua perda de privilégio por causa da expansão da cidadania desde a democratização do país e, especialmente, nas administrações federais lideradas pelo PT. Para sua profunda irritação, as elites brasileiras já perceberam que já não podem conduzir a política sozinhas. A redistribuição de renda e a expansão dos programas sociais nos últimos dez anos beneficiaram dezenas de milhões de pessoas, enquanto o crédito ao consumo, perverso como ele é, permitiu que muitas pessoas pobres frequentassem centros comerciais, voassem por todo o país, e comprassem um carro pequeno. A esquerda deveria criticar algumas dessas aspirações, e apontar como podem ser socialmente indesejáveis, ambientalmente insustentáveis, ou ambos, e que não foram acompanhadas pela disponibilização alargada de infraestrutura, ou que muitas vezes foram promovidas pelo governo a fim para apoiar o grande capital. Ainda assim, neste momento, elas expressam as demandas e aspirações das dezenas de milhões de pessoas induzidas durante décadas ao fetiche da mercadoria e alienação do trabalho.
Enquanto o grande capital ganhava na última década, a classe média não. Os chamados “bons empregos” nos setores público e privado foram relativamente escassos, o ensino superior não é mais uma garantia de renda, e os jovens acham difícil fazer melhor economicamente do que os seus pais fizeram. Grupos de classe média querem desesperadamente o crescimento econômico, mas eles permanecem ideologicamente ligados a um projeto neoliberal-globalizado que retarda o crescimento. Eles também estão assustados com o suposto “radicalismo” do governo, apesar de moderação extraordinária do PT, e com medo de o Brasil se tornar uma outra Venezuela numa associação sem qualquer fundo de conhecimento.
A segunda lição dos protestos é que, circunstâncias econômicas favoráveis às políticas da “esquerda neoliberal” implementadas pelo PT, e a maior legitimidade do Estado, que acompanhou a eleição de Lula, podem desarmar o direito político e o desligamento da esquerda radical das massas da população. Lula terminou seu segundo governo, em 2010, com taxas de aprovação tocando os 90%, e Dilma Rousseff teve 60-70%, até os protestos, o que nunca havia acontecido com qualquer presidente brasileiro em seu terceiro ano de mandato. Nenhum partido jamais prosperou à esquerda do PT e, até recentemente, a oposição de direita foi irremediavelmente desorganizada. Por um breve período, o PT conseguiu algo perto de hegemonia política no Brasil. Agora, o PT e o país estão imersos numa confusão política.
A terceira lição é que as realizações das administrações do PT aumentaram as expectativas, bem como os rendimentos. O emergente pobre quer consumir mais, maiores massas de pessoas querem a inclusão social, e ambos querem melhores serviços públicos. As classes médias oscilam entre indiferença e hostilidade aberta aos pobres, mas gostariam de se beneficiar de bons serviços públicos em algum momento no futuro. Eles são, no entanto, absolutamente opostos a pagar impostos mais elevados, a fim de tê-los. Eles alegam que já pagam muito, que a corrupção já desvia uma grande parte das receitas do governo, e que “seus” impostos têm apoiado uma massa parasitária de pobres não merecedores através dos programas de transferência federais. Ao mesmo tempo, a imprensa e a classe média ignoraram completamente o fato de que quase metade do orçamento federal está empenhado em servir a dívida pública interna – efetivamente um programa de bem-estar para os ricos – e que isso supera o custo das despesas sociais e federais dos programas de transferência.
Estas enormes exigências sobre o estado vem na esteira da decomposição da tradicional da classe trabalhadora e a desmoralização e desorganização dos partidos de esquerda e sindicatos, após a transição para a democracia, a transição para o neoliberalismo, e as eleições de Lula e Dilma. Seu resultado é que, enquanto a classe média está confusa, irritada e desorganizada, os trabalhadores estão descontentes, por razões diferentes, marginalizados, e também desorganizados. Esta é uma receita para volatilidade política, e isso coloca problemas difíceis para a esquerda.
Os problemas evocados pelo movimento
Dilma Rousseff foi eleita presidente pela base social de Lula, principalmente os pobres, com o apoio do grande capital. Mas Dilma tinha uma limitação: ela sempre foi um tecnocrata, nunca tinha sido eleita para um cargo público, e não tinha a sua própria base política. Ainda pior, a economia foi obrigada a desacelerar durante sua administração, após os anos de expansão em meados dos anos 2000, e o extraordinariamente bem sucedido salto do Brasil após a crise global de 2008.
A desaceleração econômica necessariamente cria tensões sociais e políticas por causa de insatisfações existentes e aspirações conflitantes, e a capacidade de encolhimento do Estado para resolvê-los é limitada pela pluralidade patriarcal do Congresso. Isso torna impossível para o PT governar sem alianças com partidos de direita indisciplinados e pessoas desagradáveis, que têm de ser geridos sob o olhar de uma imprensa implacavelmente hostil e o escrutínio de um sistema judicial de direita.
O espaço para gerir essas contradições diminuiu ainda mais nos últimos meses. A inflação, o déficit em conta corrente e o déficit fiscal estão subindo, e a moeda está caindo por causa do declínio global dos preços das commodities, as exportações de baixo valor, a desaceleração do crescimento na China e o desaparecimento de flexibilização quantitativa nos EUA e da Zona do Euro. Isso levou o Banco Central a aumentar as taxas de juros, os bancos estatais a reduzir o crédito, e o governo federal e as empresas estatais a cortar gastos e investimentos públicos. A economia estagnou, e tornou-se difícil continuar reduzindo a desigualdade sem ferir diretamente os privilégios estabelecidos. Essas dificuldades têm sido ampliadas por uma campanha implacável da imprensa sugerindo que a corrupção é mais prevalente do que o habitual, e que a economia está fora de controle.
Voltemos agora às manifestações. Embora tivessem determinantes complexos, sobrepostos e contraditórios, agora podemos identificar quatro das suas implicações políticas. Em primeiro lugar, a confusão, que foi intensificada pela falta de intervenção da classe trabalhadora organizada. Sob o neoliberalismo, a reestruturação do capital reconfigurou a classe trabalhadora, deficientes em seus mecanismos tradicionais de representação, incluindo sindicatos, associações e partidos de esquerda, e em grande parte destruindo o senso de coletividade dos trabalhadores. O Brasil agora tem um operário socializado sob o neoliberalismo, atomizado, inexperiente na ação coletiva, ligado a comunicação baseada no direito formal e relutantes em aceitar mecanismos tradicionais de representação, incluindo partidos e sindicatos. Há também um estreitamento de ambição entre esta classe, e uma rejeição generalizada às aspirações coletivas para mudar a sociedade: seus objetivos tendem a ser limitados pelo quadro de referência imposta pelo neoliberalismo. Isso torna difícil para articular demandas de classe de forma eficaz, porque as metas tornaram-se mais difusas sob o neoliberalismo, e também porque e os trabalhadores estão predispostos contra a ação coletiva.
Em segundo lugar, os protestos expressaram uma confluência de insatisfações, inclusive contra a expansão da cidadania, que reduziu a classe média e, por parte dos trabalhadores e dos pobres, exige a continuação do alargamento da cidadania, melhores serviços públicos e melhores condições de vida. Ambos os grupos também protestaram juntos, por causa de sua percepção de disfuncionalidade e corrupção nas instituições do Estado, que a imprensa de direita destacou com entusiasmo, como se fossem novas e tivessem sido criadas pelo PT. Essas exigências contraditórias provavelmente poderia ser controladas se a economia brasileira estivesse crescendo, o que não aconteceu, o que faz cada queixa mais urgente, e cada restrição mais dura. Em terceiro lugar, há uma confusão política sobre as atribuições do governo, e um vácuo político na esquerda. Em quarto lugar, o fator comum na maioria das demandas e insatisfações expressas no movimento das jornadas de junho é o Estado – e não apenas a política de Estado atual, mas a estrutura do Estado brasileiro.
Se o movimento estivesse unido, se tivesse um caráter claro próprio da classe trabalhadora, e se fosse liderado por organizações de esquerda, o Brasil poderia estar se movendo em direção a uma crise revolucionária. Mas isso não está acontecendo: não há partido revolucionário capaz de mobilizar e liderar a classe trabalhadora, nenhuma percepção de que o Estado não deve continuar a ser dominado por interesses da burguesia, e nenhum programa compartilhado para a transformação social, econômica e política. Seria terrivelmente injusto dizer que o Reúne Ilhéus não pautou uma orientação socialista, mas seu caráter reprodutor não engajou suficientemente seus ativistas em ações coordenadas, cooperação mútua e permanência do debate. Hoje, às vésperas das eleições, podemos perceber a desarticulação dramática das juventudes e grupos de luta, que fermentou um espaço onde indivíduos sem nenhum compromisso popular não se intimidam em pleitear espaços de poder e representação. Um cenário que certamente não seria confortável em 2013. Embora os protestos tenham segurado o aumento da tarifa vários meses, passado o fulgor das ações, o transporte público municipal se tornou cada vez mais caro e degradante. Os vários meses que a juventude ilheense se articulou para garantir o acesso aos direitos básicos de sua população mais necessitada criaram um clima de emancipação e vivência cidadã. Apesar das dores, há uma simples lição exemplar que podemos tirar de toda essa trajetória: quando queremos estar juntos pelos motivos certos, transformamos.
*O MPL foi fundado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005.
Elisabeth Zorgetz é escritora e colaboradora do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina.
Postado por Blog do Gusmão.
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