Por que o Brasil não salta a barreira do blá-blá-blá e engrena uma política vencedora de esporte na escola
11 de agosto de 2012 | 20h 00
Christian Carvalho Cruz, de O Estado de S.Paulo
Joaquim Carvalho Cruz (sim, só uma coincidência)
tinha 21 anos quando, vestindo azul, carregou sua magreza e seu
semblante de esforço ao até hoje único ouro olímpico do Brasil em provas
de pista no atletismo. Correu a final dos 800 metros rasos dos Jogos de
Los Angeles, em 1984, em 1 minuto e 43 segundos, recorde olímpico na
ocasião. Lá se vão quase 30 anos. E tanta coisa mudou de lá para cá. A
União Soviética, que boicotou aquela Olimpíada, desapareceu. A China
ficou só em quarto. O próprio Joaquim, que continua magro, modesto e
tímido, já não tem aquela cabeleira toda, ganhou uns fios grisalhos e
agora fala com leve sotaque americano - reflexo dos 30 anos nos Estados
Unidos, onde estudou, casou, cria seus dois filhos adolescentes,
trabalha num centro médico da Marinha americana procurando talentos
esportivos entre militares feridos de guerra, treina atletas olímpicos e
paraolímpicos do país e, finalmente, onde pensa em maneiras de mudar o
Brasil por meio do esporte.
Divulgação
“É incrível que nesses 30 anos quase nada tenha mudado
estruturalmente nessa área. Será que nossos dirigentes e políticos ainda
não enxergaram que a solução para nossos problemas está no esporte na
escola?”, ele pergunta retoricamente, porque sabe bem a resposta. “É na
escola que formaremos uma base grande da qual será possível tirar muitos
campeões.” De outro modo, ele lamenta, continuaremos a suspirar por
esporádicos heróis como o ginasta Arthur Zanetti, ouro nas argolas em
Londres, e os irmãos Falcão do boxe, que treinavam humildemente socando
humildes bananeiras num humilde quintal. “A falta de oportunidades para o
garoto brasileiro que queira ser esportista me assusta.”
Mas Joaquim não fala apenas. Ele também age. Em Brasília, onde mantém
um instituto que leva seu nome, acaba de iniciar um processo seletivo
para descobrir e formar fundistas capazes de medalhar na Olimpíada de
2020. O Programa Rumo ao Pódio, patrocinado pela multinacional do ramo
de embalagens Tetra Pak com R$ 1,4 milhão, recebeu 1.400 inscritos.
Depois de uma fina peneira inspirada no modelo de seleção dos Seals
americanos, sobrarão 30 jovens de 16 a 20 anos.
Na quinta-feira, Joaquim estava no Estádio Olímpico de Londres quando
falou ao Aliás por telefone. Entre uma resposta e outra, dirigia
palavras de conforto à corredora americana Alice Schmidt, sua pupila,
desclassificada na semifinal dos 800 metros. Ele contou como foi, desta
vez nos bastidores, fazer história de novo nos Jogos. Joaquim também era
o técnico da atleta saudita Sarah Attar, de 19 anos, que de calça,
mangas compridas e lenço na cabeça, foi ovacionada pela plateia mesmo
terminado sua prova em último lugar. Pela primeira vez o comitê olímpico
saudita permitiu a participação de mulheres nos Jogos. E se até isso
mudou...
O que te vem à cabeça quando dirigentes esportivos e políticos dizem que nós seremos top 10 nos Jogos do Rio em 2016?
Bom, essa é a especialidade deles, não é? Falar. Falar qualquer
coisa. Mas tudo bem. Falar de objetivos altos não é ruim. Só que já se
passaram dois anos desde que o Brasil foi escolhido para sediar a
Olimpíada e nada foi feito para mudar o que interessa, o que realmente
será capaz de construir uma realidade nova no País, que é o esporte na
escola. Será que não enxergam que esse é nosso maior problema? Eu li que
dias atrás, aqui em Londres, autoridades brasileiras iniciaram
oficialmente a contagem regressiva para os Jogos do Rio. Com relógio e
tudo. Só agora?! Essa contagem tinha que ter começado dois anos atrás.
Se seis anos já seriam insuficientes para formar um atleta ou mudar a
estrutura esportiva do Brasil, quatro anos então... Temos que mexer
nesse cenário ONTEM. Os políticos e dirigentes fazem muita política e
pouca ação. A hora de falar já passou. Agora é hora de agir.
O dinheiro aumentou. Fala-se em R$ 2 bilhões investidos nos últimos quatro anos. Seria o dobro do ciclo olímpico anterior.
Sim, é verdade. Cresceu o apoio às confederações e ao Comitê Olímpico
Brasileiro (COB), que são os responsáveis pela tarefa de possibilitar
que os atletas ganhem medalhas. Mas tem um detalhe. Nós não temos esses
atletas em quantidade. Temos uns poucos. Sabe por quê? Porque a base de
onde se extraem possíveis medalhistas olímpicos é minúscula. Tirando o
futebol, o Brasil não é uma mina que jorra atletas de alto desempenho. A
falta dessa base é nossa maior deficiência. E a base precisa ser feita
na escola. É o caminho mais fácil e promissor, para o esporte e para o
País. Nos últimos seis anos, saiu ministro de Esporte, entrou ministro
de Esporte. Saiu presidente da República, entrou presidente da
República. E mudou o quê? Mas algo ainda pode ser feito.
O quê? De que maneira?
Para o Rio 2016 podemos copiar o exemplo britânico. Eles chamaram um
holandês que mandou todo mundo embora e convidou um monte de gente
comprovadamente boa, experts, muitos ex-esportistas do mundo todo, para
trabalhar basicamente com os atletas já existentes e com potencial. Por
meio das loterias, aumentaram os repasses de dinheiro e investiram
pesado individualmente nesses atletas. O resultado está aí: a
Grã-Bretanha deve terminar em terceiro lugar no quadro de medalhas, sua
melhor participação na história da Olimpíada.
Mas esse método não mascara nossa grande deficiência, que é
justamente a inexistência de um programa esportivo duradouro e que nos
faça crescer como nação? As medalhas olímpicas devem ser o objetivo em
si ou a consequência de um trabalho maior?
Você tem razão. A Olimpíada não vai acabar em 2016. E acho que o
Brasil também não. Então, não precisamos pensar tão pragmaticamente só
para daqui a quatro anos. O correto é aproveitar a grande oportunidade
que temos para implantar esse programa mais duradouro junto com a
educação, algo de que toda a população vai se beneficiar. Porque está
mais do que provado que a prática de esportes melhora as notas dos
alunos, afasta os jovens das drogas, da criminalidade, dá oportunidade e
por aí vai. Por outro lado, ter a medalha olímpica como objetivo não é
ruim. O atleta, o garoto, precisa acreditar que é possível. Parece
pouco, mas te asseguro que significa um passo enorme.
Imagino que essa segurança vem da sua própria história...
Sim, da minha vida no esporte. Quando eu tinha 15 anos um americano
me deu um par de tênis All Star - eu jogava basquete - e disse que
quando eu terminasse a escola em Taguatinga ele me daria uma bolsa para
estudar e jogar numa universidade americana. Eu ia duvidar? De jeito
nenhum! Eu pensava: “Puxa, se esse cara que nem é meu parente, meu amigo
ou meu vizinho vem de outro país e acredita desse jeito em mim, eu devo
ser especial... Vou nessa!” Foi assim que me tornei medalhista
olímpico, seis anos depois. Então, nós temos que plantar a semente da
vitória. A vitória pode ser a medalha olímpica. Mas também é a jornada
do garoto atrás dessa medalha. Veja uma coisa. Hoje (quinta-feira) a
minha atleta, Alice Schmidt, que eu treinei por sete anos, não se
classificou para a final dos 800 metros. Ela deixou a pista chorando, eu
a deixei chorar um tempo e então fui conversar. Ela já está no final da
carreira, portanto era praticamente a última chance dela em Olimpíada.
Perguntei se, apesar do resultado ruim em Londres, ela tinha aprendido
algo na trajetória esportiva dela. “Muita coisa, aprendi a viver”, ela
me respondeu. É isso! A medalha representa o sacrifício, o esforço, é um
símbolo importante. Mas, se ela não vem, a jornada tem que ter servido
para aprendizados e sentimentos maiores, coisas que você vai carregar
pelo resto da vida.
Além da Alice havia outra corredora treinada por você nos 800
metros, a Sarah Attar. Ela chegou em último lugar na eliminatória, 45
segundos atrás da primeira colocada, mas fez história por ser a primeira
mulher saudita a disputar uma prova de atletismo nos Jogos. Que tal a
experiência?
A Sarah realizou o sonho de muitas mulheres e meninas. Ela permitiu
que as novas gerações sonhem. Conheci a Sarah apenas seis semanas atrás,
e tenho orgulho dela como se fosse minha filha. Ela é originalmente
corredora de maratona. Nasceu nos Estados Unidos e tem dupla cidadania,
porque a mãe é americana e o pai, saudita. Treina e estuda em uma
universidade da Califórnia. O pai me ligou, explicou a situação. Ela
tinha sido convidada pelo COI, não disputou seletiva. Eu topei e pensei:
“Meu Deus, preciso montar um programa de trabalho para que essa menina
termine a prova sem se machucar”. Porque mudar da maratona para os 800
metros não é pouca coisa. Seria o mesmo que pedir pro Usain Bolt correr
os 10 mil metros. No fim, foi uma experiência muito legal. A Sarah é
supercompetitiva. Estava preocupada, não queria fazer feio. Ficava na
internet investigando sobre a pior marca dos 800 metros na história dos
Jogos. Aí falei para ela: “Para com isso, Sarah. Você já é uma vencedora
olímpica antes de entrar na pista. Quanto mais tempo você levar, melhor
para o mundo! Não esquenta com o tempo”. Ela curtiu estar ali. Depois
da prova veio me dizer que não tinha sentido o próprio corpo durante
toda a corrida. Estava consumida pela energia da plateia.
Voltando às ambições brasileiras: como é que se forja uma potência olímpica?
Certamente não é em quatro anos. Tem que dar oportunidade para o
garoto praticar esporte na escola, na comunidade dele, e dali você tira
os fora de série capazes de competir em alto nível. Qual é nossa
realidade hoje? Trinta por cento das escolas públicas brasileiras não
têm espaço adequado à prática esportiva. Não estou falando de quadras
poliesportivas. Não existe espaço nenhum, nada. São dados de uma
pesquisa encomendada pela organização Atletas Pela Cidadania, da qual
faço parte junto com Raí, Ana Moser, Magic Paula e uma porção de atletas
preocupados com o futuro do País. Hoje acontece o seguinte: o garoto
pobre brasileiro vê os grandes heróis olímpicos pela TV, se empolga e
sente vontade de imitá-los. Quer correr, nadar, jogar tênis, saltar. Ok,
ótimo! Mas onde ele vai praticar? Em clubes? Esquece, a família dele
não tem dinheiro para pagar a mensalidade. Quando eu ganhei a medalha de
ouro em Los Angeles, meu irmão e meu primo ficaram tão entusiasmados
que decidiram correr também. Começaram a correr na rua mesmo, sozinhos,
sem instrução, já que não tinha outro jeito. Durou dois dias o
entusiasmo deles. E talvez nós tenhamos perdido duas medalhas olímpicas,
vai saber... Isso faz quase 30 anos e continua do mesmo jeito. O poder
público não pode sonegar essa oportunidade ao garoto. Tem o dever de
proporcionar a chance de ele manter o entusiasmo, a chama. E é a escola
pública que pode fazer isso, não o clube. Do clube saem os atletas cujas
famílias podem bancar o início da jornada dele.
Um modelo perverso que faz o Brasil viver de heróis olímpicos esporádicos, não? Seu caso é uma exceção.
Mais ou menos. Eu tive sorte. Como meu pai era carpinteiro,
trabalhava na indústria de construção civil, eu podia frequentar o Sesi
(Serviço Social da Indústria) de Taguatinga. Meus amigos da escola ou do
bairro não podiam, pois precisava de carteirinha para entrar. Então,
aos 7 anos eu fui estudar num local que oferecia também boa estrutura
para a prática de esporte. Ali encontrei meu primeiro professor de
basquete, que depois descobriu meu talento para o atletismo. Era um
lugar onde eu passava a maior parte do meu tempo. No Sesi fui
apresentado a educação física, tratamento médico, alimentação correta,
vi um dentista pela primeira vez na vida, tomava remédio para matar os
bichos da barriga. O Joaquim Cruz campeão olímpico vem daí. Mas e os
meus amigos e vizinhos que só tinham a rua?
Por onde você começaria a mudança?
Insisto: na escola. Nos meus tempos de ginásio, nós íamos para a
escola de manhã e voltávamos lá à tarde para as aulas de educação
física. Hoje a educação física está dentro da grade escolar, antes da
aula de matemática e depois da de história. Ou seja, o garoto que é bom
em algum esporte, joga um basquetinho ralado na rua dele, não vai poder
desenvolver essa aptidão na escola, onde poderia dar a sorte de ter um
professor capaz de identificar nele algum potencial. Ao contrário, ele
vai ter só os 50 minutos de aula, insuficientes para desenvolver algo
consistente ou mostrar seu talento. E assim, o garoto que gosta de jogar
na rua continua na rua. Aí ele chega à adolescência, fase da vida em
que a gente se junta, faz grupos, turminhas, e em vez de se juntar a um
grupo de estudantes atletas como ele, com possibilidade de construir uma
vida melhor, ele se junta a grupos destrutivos. Bem, eu acho que o
Brasil conhece bem essa história...
Como funciona nos Estados Unidos?
Vou contar a minha experiência para você sentir a diferença. Eu tenho
dois filhos, de 18 e 15 anos. Quando o mais velho tinha 4, minha mulher
me pediu que eu o colocasse no esporte. “Ok, vou matriculá-lo no
futebol.” Saí da minha casa, andei mil metros até o centro comunitário
do bairro e inscrevi meu garoto nas aulas de futebol. Ali mesmo, no ato
da inscrição, me perguntaram se eu gostaria de ser professor voluntário
da turma do meu filho. Eu disse que não, pois não tinha experiência. Eu
nunca tinha tido um filho! Depois assumi uma turma de basquete. Mas na
primeira reunião com as famílias outro pai se prontificou a ficar com as
aulas. Ele recebeu as instruções necessárias e foi credenciado pela
prefeitura para ser treinador. Como nessa fase é algo bem básico, mais a
título de diversão, tudo bem que não seja um especialista. E tudo isso
sem custo, muito perto de casa, bem organizado e com boas instalações. O
centro comunitário tem ginásio, piscina, quadra de tênis, campo
gramado. Sem luxo, mas com o necessário. Cada bairro tem o seu, a 3 ou 4
quilômetros um do outro. O esporte está injetado na cultura americana -
e começa quase sempre nesses centros comunitários oferecidos pela
prefeitura.
E depois?
Na sequência vem a escola. No primeiro grau o garoto é apresentado a
diferentes modalidades, ainda sem competição. No ensino médio ele pode
participar de esportes competitivos e escolher: ou faz as aulas de
educação física, que são obrigatórias, ou entra para uma equipe que vai
competir com outras escolas do bairro, da cidade, do Estado, do país. O
poder público dá dinheiro para as escolas manterem essas equipes. Elas
são muito tradicionais. E tudo faz parte de um grande sistema gerenciado
por uma espécie de federação estadual, sem fins lucrativos, que
organiza as competições. Essa federação então trabalha em conjunto com
as universidades, que vão recrutar os melhores para serem seus
esportistas estudantes. A base, portanto, é muito grande. Encontrar
atletas com potencial para o alto rendimento não é procurar agulha no
palheiro como no Brasil. Desse sistema americano saem todos os grandes
esportistas do país.
Por que é tão difícil estruturar um sistema assim no Brasil?
Porque nossos políticos conversam demais, e só entre eles. Os Atletas
pela Cidadania têm um plano pronto, com diversas propostas de ação,
entre elas a de que o País invista para levar esporte a todas, TODAS as
escolas públicas até 2022. Há quase um ano nós pedimos uma audiência com
a presidente Dilma para apresentar esse plano. Estamos esperando.
E por que você insiste, Joaquim? Por que se importa? Por que luta contra uma estrutura que está aí há pelo menos 500 anos?
(Depois de longo silêncio, emocionado) Olha, o meu trabalho como
gente, como ser humano, não acabou ainda. Eu nasci com um objetivo. E se
isso não for levado para a frente, todo o sacrifício, os treinamentos,
as dores, as cirurgias terão sido em vão. (Silêncio de novo.) Existe
algo maior do que tudo isso, sabe? Eu acredito que toda criança nasce
uma estrela e tem o direito de brilhar. E nós adultos temos a
responsabilidade de oferecer oportunidades de ela brilhar. Acho que é
isso.
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