quarta-feira, 18 de julho de 2012

Escolas do barulho


 
Infraestrutura

Como reduzir a poluição sonora nas escolas, que influencia a concentração e capacidade cognitiva

Cristina Charão


Escola em avenida de São Paulo (SP) sofre com o barulho nas salas de aula
Enquanto organiza os livros sobre a mesa, abre o diário de classe e tenta lembrar como havia planejado iniciar aquela aula, a professora diz "por favor, silêncio" e "pessoal, vamos ficar calmos" e mais alguns "psius". Não adianta. As crianças seguem conversando, como se a algazarra do recreio continuasse dentro da sala de aula. Agora de costas para a turma, escrevendo no quadro-negro, a professora continua pedindo silêncio. Ao virar-se, percebe que todos já se sentaram, as conversas diminuíram, mas muitos batucam com o lápis na mesa, outros se remexem na cadeira e uma parte ainda está olhando para o pátio. Ela inicia a aula, a plenos pulmões.
Muitos professores reconhecem-se nessa situação, mas, de tão acostumados, nem sempre percebem que sua voz concorre com a do colega na aula de educação física no pátio e o ronco do motor dos ônibus que param no ponto ao lado do portão da escola. E talvez nem se deem conta de que a agitação da turma e as dificuldades das crianças em se concentrar têm a ver com esse ruído. O grande problema, no entanto, é que os gestores também parecem não perceber a poluição sonora como uma questão que deva fazer parte do planejamento de uma escola. Engenheiros e arquitetos contratados para construí-las ou reformá-las, tampouco. O resultado é que o planejamento da grande maioria dos prédios e salas não considera o som gerado internamente - a voz do professor, os passos no corredor, as crianças no pátio -, nem as fontes permanentes de barulho que as cercam - carros, motos, ônibus, aviões, lojas...

Basta uma conta simples para entender o resultado da ausência de planejamento acústico nas escolas: confrontando a voz do professor com o ruído da sala, o resultado quase sempre é negativo para o docente. Com isso, os alunos não conseguem entender o que está sendo dito. Para os fonoaudiólogos, essa conta é expressa na relação sinal versus ruído: a diferença entre a intensidade do som da fonte principal e o barulho de outras fontes. Essa relação tem implicações diretas sobre a inteligibilidade da fala. De acordo com estudos feitos por um laboratório norte-americano, a capacidade de distinguir os fonemas (diferentes sons existentes em uma palavra) é considerada ótima apenas quando essa relação gira em torno de + 24 decibéis (db). Nessas condições, é possível reconhecer mais de 90% dos sons. Se essa relação cai pela metade, + 12 db, o percentual de fonemas compreendidos cai para 80%, resultando na perda de informações sonoras.

"O professor também poderá ficar estressado e assumir um padrão de 'voz gritada' para competir com o ruído de fundo", diz a fonoaudióloga Ana Cláudia Fiorini, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As consequências vão de problemas de saúde para os docentes, especialmente disfunções na voz provocadas por alterações nas pregas vocais, à diminuição da atenção e concentração dos alunos.


Problemas para a aprendizagem O fato de terem de se esforçar e, às vezes, nem assim conseguirem escutar direito o que os professores dizem é apenas um dos elementos que levam os alunos a perderem a concentração. Os sons do mundo lá fora são um forte atrativo que acaba provocando a troca constante do foco de atenção dos alunos. "Se 10 pessoas gritam 'gol', é natural que os alunos queiram saber de quem foi o gol e, aí, param de ouvir o professor", exemplifica João Gualberto Baring, professor de acústica da Universidade de São Paulo e coordenador da Comissão de Normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) sobre Desempenho Acústico de Edificações.

Além disso, o excesso de ruído funciona como um estimulante, contribuindo para a agitação dos alunos. Diversos estudos comprovam que pessoas expostas a muito barulho apresentam altos índices de cortisol e adrenalina no organismo, hormônios relacionados ao estresse.

Estudos do escritório europeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam ainda que a exposição a ruídos de fundo entre 55 e 65 decibéis resulta em uma perda de 20% da capacidade cognitiva. Acima de 75 decibéis, essa perda ficaria entre 70% e 85%. O relatório também mostra que ruídos mais constantes, como o de automóveis em uma autoestrada, podem ser menos prejudiciais do que os mais fortes, como o de aviões passando. Perdas na capacidade de memorização e compreensão da leitura, entretanto, ocorrem em qualquer situação.

Níveis de ruído Considerando que a voz humana, em situação de conversação normal, produz um som entre 60 e 70 decibéis, a OMS sugere que o nível ideal de ruído em ambientes escolares seria de 35 db. Com essa relação é possível ter uma ótima compreensão do que está sendo dito pelo professor sem que ele tenha de rea-lizar esforços extras. A Norma 11.152 da ABNT é um pouco menos exigente: estabelece como limite para o ruído a faixa de 40 a 50 decibéis para salas de aula e 35 a 45 para bibliotecas e laboratório.

Em medições realizadas por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em escolas estaduais de Florianópolis, o nível médio de ruído variou entre 51 e 71 decibéis e registrou picos de até 88 decibéis. Além de todas as escolas serem mais barulhentas do que o mínimo aceito pela norma nacional, nos piores casos o som equivale a uma moto ligada dentro da sala de aula. "Em dois anos de estudos, não achamos nenhuma escola que tenha uma arquitetura mais consciente em relação à acústica", conta a coordenadora da pesquisa e professora da UFSC, Elvira Viveiros.

O nível de ruído de uma sala é sempre medido com ela vazia. Já o trabalho dos pesquisadores catarinenses considerou também a reverberação, ou seja, a reflexão do som pelas paredes da sala que pode provocar interferências na maneira como a voz do professor se propaga no espaço, para calcular a inteligibilidade da fala nas salas estudadas. O índice máximo de inteligibilidade encontrado foi de 88%.

O professor Baring diz que, com salas menores, os problemas com a reverberação tendem a diminuir. Mas chama a atenção para o fato de que esse tipo de interferência é particularmente prejudicial na educação infantil. "Por estarem desenvolvendo a fala, torna-se muito difícil para as crianças compreenderem o que é dito."

Elvira Viveiros afirma que é possível e desejável que o interior das salas seja pensado para torná-las acusticamente confortáveis, seja para evitar os problemas com reverberações, seja para diminuir a possibilidade de serem gerados ruídos internamente. A arquiteta diz que as exigências em relação à durabilidade, resistência e facilidade de limpeza de mesas, cadeiras e do piso tornam difícil mexer nestes itens. Ainda assim, pode-se optar por um mobiliário que gere menos barulho, como cadeiras com pés emborrachados. Também é possível fazer mudanças no forro e nas paredes, aplicando materiais que ajudem a reduzir os efeitos das interferências.

Mas nada deve ser feito de forma precária. Materiais inapropriados podem resultar em deterioração das paredes. Além disso, nenhuma solução interna dá conta de isolar o ambiente dos ruídos externos.

Erros de projeto Os problemas em relação ao isolamento acústico das salas de aula nascem de projetos malfeitos. "O grau de isolamento tem relação direta com o desenho da escola e a sua implantação: distância da via de acesso, posição da quadra esportiva e do pátio", explica Elvira. Ou seja: a escola acusticamente adequada começa na planta.

O tipo de material usado nas paredes, teto e piso pode ajudar. Por exemplo, blocos de concreto vazados podem diminuir a transmissão de som e alguns tipos de revestimento de piso absorvem mais o barulho dos passos no corredor. Mas Baring é taxativo: "a escolha dos materiais é importante, mas é um complemento". Se a escola está próxima da rua e não há barreiras que possam abafar o som de fora, como árvores, nenhum material dará conta do barulho.

Um dos modelos mais usados para a construção de prédios escolares é a disposição em U, com o pátio ou quadra esportiva no centro e as salas distribuídas em semicírculo. Isso cria um enorme problema, pois as atividades rotineiras da escola tornam-se fontes permanentes de ruído. Outro tipo de erro comum é posicionar as janelas para o pátio ou o corredor. "É o inverso do que deveria ocorrer: em vez de a edificação preservar o usuário, é ele que precisa se controlar, abrir a porta para pedir que os que estão do lado de fora façam menos barulho, bater na sala ao lado e pedir que baixem o volume do filme em exibição."

Reformas As soluções para os problemas criados por maus projetos não são animadoras. A utilização de microfones e caixas de som não é recomendada. Segundo Elvira, ela amplifica o problema, pois as salas não foram pensadas para essa fonte sonora, que aumenta a competição com os ruídos externos.

Fechar as janelas e tentar isolar as salas usando os vidros duplos exige gastos com a instalação de sistemas de ventilação artificiais. Segundo Baring, os preços de aparelhos de ar-condicionado vêm caindo, mas é preciso um bom projeto de instalação para que o sistema não se torne ele próprio fonte de ruído.

Quando nada pode ser feito, a solução é reorganizar o uso das salas. Ele cita o exemplo de uma escola paulistana localizada na tradicional rua da Consolação, hoje  com trânsito intenso o dia inteiro. A saída encontrada por uma das diretoras foi transformar as salas voltadas para a avenida em depósito ou escritórios. "Mas a escola precisou de salas e na gestão seguinte, tudo voltou a ser como antes."
Barulho sob controle
Para cada projeto é preciso analisar as condições do ambiente onde a escola está ou será construída. Ainda assim, algumas recomendações são válidas:

- Considerar barreiras que abafem o som da rua
- Garantir distância das salas para as quadras e pátio
- Evitar construções em U, com as salas construídas num semicírculo em volta da quadra ou pátio
- Evitar janelas com abertura para o pátio ou o corredor
- Preferência por móveis com pés emborrachados
- Materiais que absorvam transmissão dos sons

Reforma - Microfones aumentam a competição com os ruídos externos
- Janelas fechadas e vidros duplos exigem gastos com ar-condicionado e cuidados na instalação para que não gerem mais ruídos
- Mudanças no forro e nas paredes podem reduzir parte das interferências, mas materiais inapropriados podem deteriorar construção

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