CC/IMAGENS USP
Menores em palestra em unidade da Fundação Casa, de São Paulo. Para maioria da sociedade, internar é 'sumir' com o problema
A RBA publica
uma série de reportagens sobre a juventude brasileira. Cinquenta e um
milhões de pessoas, ou 37% da população entre 15 e 29 anos, os jovens
padecem da falta de políticas públicas específicas. Quando existem, no
geral são trabalhadas sob a perspectiva de que o jovem é um problema em
potencial, e não o responsável por ideias inovadoras e o ator da
conquista de novos direitos.
São Paulo – Distante de conseguir realizar suas principais funções —
responsabilizar e reinserir plenamente os adolescentes em conflito com a
lei no conjunto social —, as medidas socioeducativas padecem com a
pouca estrutura dada pelos governos e a desvalorização dos
profissionais. Para os especialistas ouvidos pela RBA,
as diretrizes estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) são
adequadas, mas, além da questão estrutural, é preciso que a sociedade
entenda que o processo de reinserção social é responsabilidade de todos. “O
primeiro passo da ressocialização é o adolescente reconhecer o erro que
ele cometeu. Em segundo, elaborar um projeto de vida diferente, para que
ele saia da medida socioeducativa com uma nova percepção, um novo
caminho a ser traçado. E para isso ele precisa da sociedade. Precisamos
entender que ele pagou pelo erro e agora precisa de novas oportunidades.”
A definição da conselheira Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) Miriam Maria José explica o entendimento de que
essas ações devem ser um processo educativo e de cidadania.
São
seis as medidas socioeducativas estabelecidas pelo ECA em 1989:
internação e semiliberdade, aplicadas em casos considerados graves ou
reincidentes e executadas pelos governos estaduais; Advertência e
Reparação de Dano, que se encerram nelas mesmas; Prestação de Serviço à
Comunidade e Liberdade Assistida, que são realizadas pelos Centros de
Medidas Socioeducativas. No geral esses centros são geridos por
organizações não governamentais – no caso da cidade de São Paulo, conveniadas com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads).
A
coordenadora do Centro de Medidas Socioeducativas (MSE) do Campo Limpo,
na zona sul da capital paulista, Vanessa Bastos, explica que as medidas
não têm somente a função de responsabilizar o adolescente. “No caso da
liberdade assistida, por exemplo, busca-se garantir todos os direitos
que não foram efetivados antes. Inserção na escola, documentos,
inscrição em espaços socioculturais para juventude, por exemplo. Além
disso, a família é integrada ao processo, para que se fortaleça e atue
em conjunto para o jovem sair da situação em que ocorreu o ato
infracional”, explica.
Em
todos os casos, existe uma série de ações que devem ser realizadas para
garantir que o processo de ressocialização se cumpra e os direitos dos
adolescentes sejam efetivados. A principal delas é o atendimento
multidisciplinar, que produz um diagnóstico da condição psicossocial do
adolescente e estabelece um plano de atendimento para que ele saia da
situação em que chegou ao ato infracional.
No
caso dos centros de medida, esse diagnóstico deve ser realizado pelos
profissionais da entidade. Entretanto, a proporção entre educadores e
adolescentes torna inviável essa tarefa. Os convênios são firmados para
atendimento de 60 até 120 jovens por unidade, com um máximo de 6 a 8
educadores, respectivamente. Hoje existem 51 centros de medida
distribuídos na capital, atendendo 6 mil adolescentes, entre 12 e 21
anos, que cumprem medidas em meio aberto.
Para a
coordenadora do Centro de Medidas Socioeducativas (MSE) do Grajaú,
Raquel Sampaio, o diagnóstico interdisciplinar se torna um mito, porque,
com essa proporção, a equipe não consegue se desdobrar para realizar a
tarefa. “A avaliação multidisciplinar do adolescente requer tempo e
dedicação de diversos profissionais. Mas com a estrutura que temos hoje é
impossível, porque temos um número muito alto de adolescentes por
técnicos”, explica. O MSE Grajaú, inclusive, está acima da capacidade,
com 190 adolescentes atendidos.
Uma
das principais diretrizes é que o adolescente seja reinserido na
comunidade. Segundo Vanessa, a articulação com a rede local é o que
emperra o potencial do atendimento socioeducativo. “Às vezes o
território conta com um centro de medidas socioeducativas e tem uma
unidade de saúde, um centro de atendimento para idosos, uma escola, um
Centro de Referência em Assistência Social, um centro para juventude,
entre outros. Nenhum deles quer saber dos adolescentes que cumprem
medida. Tem-se uma ideia de que eles vão perturbar a ordem, vão causar
problemas. E ninguém quer participar do processo”, lamenta.
Essa
situação dificulta o processo de socialização do adolescente. Muitas
ações não podem ser executadas no próprio centro, seja por falta de
condições, seja porque o ideal é que haja integração comunitária.
Medidas de prestação de serviço à comunidade, por exemplo, têm
necessariamente de ser realizadas fora do espaço do MSE. Oportunidades
em cursos profissionalizantes são raríssimas. E isso atinge outro pilar
que faria diferença no sucesso do atendimento. “Muitos adolescentes
querem trabalhar, ganhar dinheiro para consumir. Essa é uma perspectiva
que é pouco observada”, considera Vanessa.
A
presidenta da ONG Ampliar, que há 22 anos dá cursos profissionalizantes a
menores carentes, Maria Helena Mauad, tem se preocupado justamente com a
questão do trabalho. Ela defende que seja promovida uma mudança no ECA
para permitir que os adolescentes trabalhem formalmente a partir dos 14
anos. “Mexer na questão da maioridade não resolve problema nenhum. Todo
mundo tem sonho de consumo e o jovem trabalhando poderia destinar uma
parte do salário para comprar aquilo que ele quer. O jovem também teria
contato com pessoas que vão ajudar na formação pessoal dele”, avalia.
Para
ela, o Programa Aprendiz não é eficiente. “Os adolescentes que recebemos
reclamam que trabalham o mesmo que um adulto, mas ganham muito menos.
Para o empresário também é ruim, pois demanda uma estrutura mais cara do
que contratar um funcionário comum, já que o adolescente deve ser
acompanhado por um profissional que ensina o trabalho e monitora seu
desempenho”, avalia.
Para o
secretário de Gestão do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de
Interlagos (Cedeca), Tuto Wehrle, da forma como são executadas hoje, as
medidas socioeducativas se tornam terapia ocupacional, e não
ressocialização. “Precisamos criar alternativas a essas ofertas que ele
encontra e o levam ao ato infracional. Sem isso, é um círculo vicioso:
não existem espaços para o adolescente construir seu projeto de vida.
Então ele é caçado pelo crime. Depois é inserido em um conjunto de
medidas que continuam não oferecendo alternativas. E nada se muda de
verdade”, analisa.
Uma
das possibilidades para inserir os jovens são os Centros para Crianças e
Adolescentes, que atendem crianças entre 6 e 14 anos, e os Centros para
a Juventude, que atendem jovens entre 15 e 17 anos. Porém, hoje existem
560 centros desse tipo, para atender a uma população de cerca de 1
milhão de adolescentes entre 12 e 17 anos. Isso sem contar os que estão
na faixa de idade entre 6 e 11. Para realizar este atendimento, cada
centro precisaria atender, em média, 2 mil crianças e adolescentes.
Para a
coordenadora nacional da Pastoral do Menor, Marilene Cruz, aplicar as
ações de forma rasa não significa promover a ressocialização. “Não
adianta achar que se o menino cumpriu a medida está tudo resolvido. É um
equívoco muito grande. De início, ele já vivia uma situação de
vulnerabilidade antes e vai continuar a vivê-la após a medida. Alega-se
que ele já cumpriu medida e nada adiantou. Realmente, se aplicarmos as
medidas desse jeito, como um fim em si mesma, nada vai adiantar”,
afirma.
“O
jovem tem de ser responsabilizado, tem de entender que errou. O trabalho
socioeducativo é para fazê-lo refletir. E isso requer tempo, diálogo e
oportunidades. Porque não adianta fazer todo um trabalho no sentido de
que ele mude de vida se não houver perspectiva de se construir outro
caminho”, considera Raquel.
Um
outro problema é a precarização dos profissionais. Embora a formação
superior seja requisito básico, os trabalhadores dos centros são
contratados como técnicos. “O salário é bem inferior ao seu grau de
instrução o que gera insatisfação. Se surge uma oportunidade melhor de
trabalho, o profissional vai embora. Hoje nós sofremos uma alta
rotatividade, o que prejudica seriamente o trabalho socioeducativo”,
avalia Raquel. Além disso, não há formação preparatória para os
educadores. “Vão descobrir na prática se têm condições de realizar os
atendimentos. E muitos não têm. O trabalho é cheio de realizações e
frustrações, pois são histórias de vida complexas”, completa.
Fundação Casa
Atualmente,
a fundação tem 9.112 adolescentes internados. Segundo declarou a
presidenta do órgão, Berenice Gianella, durante audiência na Assembleia
Legislativa de São Paulo em abril, o número não é resultado direto de um
aumento da criminalidade entre os jovens. “Como a liberdade assistida
no interior não está funcionando adequadamente, o juiz decreta a
internação provisória por 45 dias, para 'dar um sustinho', para ver se
os adolescentes não voltam à criminalidade. Muitos deles saem logo, o
que demonstra que não era preciso a internação. Esta, inclusive, é uma
das causas da lotação excessiva em algumas unidades”, explica.
A
Fundação Casa afirma que “logo quando chegam, os jovens passam por um
diagnóstico polidimensional e são trabalhados de acordo com um plano
individual de atendimento”. No entanto, esse diagnóstico só vale
enquanto ele está internado. Com o fim da internação, a fundação não
realiza qualquer acompanhamento do adolescente. De forma geral, após
cumprir medida na Fundação Casa, o adolescente é encaminhado para
atendimento em um centro de medida socioeducativa, onde cumpre
determinado período de liberdade assistida. Porém, os serviços são
executados por esferas de governo diferentes e não há integração das
políticas.
De
acordo com o secretário de Gestão do Cedeca, Tuto Wehrle, essa falta de
diálogo é prejudicial ao processo de ressocialização. “O adolescente é
internado e vai cumprir sua responsabilização. Mas quando ele sai não há
diálogo com as instituições que vão recebê-lo na medida em meio aberto.
Então o processo recomeça do zero. Isso prejudica o jovem, pois quebra a
continuidade do trabalho”, avalia. Para ele a integração entre as
medidas é fundamental para que as medidas atinjam seu objetivo.
A
coordenadora do MSE Grajaú, Raquel, também avalia que é necessário haver
diálogo entre a Fundação Casa e os centros de medida. “O adolescente
tem uma história de vida e um processo vivenciado na fundação. Hoje não
há diálogo entre os equipamentos para trabalhar sobre esse processo. No
máximo, recebemos uma planilha com um resumo das atividades realizadas e
o tipo de infração cometida”, disse.
Outra
questão são as ações realizadas durante a internação. Tanto o ECA
quanto o Sinase preconizam atividades escolares, esportivas, culturais e
de profissionalização. A Fundação Casa afirma que cumpre integralmente o
que está previsto no ECA e no Sinase. “Das 6h às 22h os adolescentes
têm uma agenda multiprofissional que inclui atividades de escolarização
formal, esporte, cultural, educação profissional, além do atendimento de
psicólogos e assistentes sociais”.
Porém,
em relação às atividades profissionalizantes, a fundação admite que não
tem cursos, mas sim informações sobre carreiras onde os adolescentes
terão “o primeiro contato com as profissões, para após a desinternação
darem prosseguimento aos estudos na área escolhida”.
A RBA conversou
com um jovem que passou pela Fundação Casa no último ano. LNC*, de 18
anos, conta que “o que a gente mais fazia era jogar bola. Mas tinha
atividade o dia todo, a gente fazia uns cursos e tinha a escola. Eu não
sei ler direito, então não conseguia acompanhar as aulas, nem os cursos.
Eu fiz garçom e auxiliar de escritório, mas não deram nenhum diploma,
então não serviu para nada”. O processo de internação dele foi de três
meses, tempo suficiente para desejar não voltar à Fundação Casa. “Passar pela fundação me fez refletir muito. Não quero ficar preso de novo. É muita tensão”, completa.
A conselheira do Conanda Miriam Maria José afirma
que esta situação se repete, para pior, no país inteiro. “Os centros de
internação pelo país não deixam nada a desejar aos campos de
concentração. São locais onde acontece todo tipo de violação de direitos
que você puder imaginar. Eu não conseguiria destacar qualquer um destes
locais que possa ser considerado um exemplo de boas práticas”, avalia
Miriam.
* Nome preservado a pedido do jovem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário